A hegemonia da pedagogia do capital

Na seção anterior, observamos a prevalência da ótica do capital ao longo da história da EPT no Brasil. A pedagogia do capital busca assegurar a conservação de uma sociabilidade que permita a manutenção e expansão do sistema capitalista. Os processos educativos desenvolvidos sob essa perspectiva têm como finalidade a conformação dos seres humanos à dinâmica do capital, por meio da preparação de uma força de trabalho adequada e da contenção das formas de lutas sociais e de classes. As estratégias pedagógicas utilizadas visam a ocultação das contradições do sistema, com a constituição de um ideário de justificação de sua lógica.

Vale lembrar que a ordem social produzida pelo capitalismo só se torna possível quando o processo de produção assume certas características. Primeiro, os trabalhadores perdem a propriedade de todos os meios que poderiam garantir sua subsistência de forma autônoma, restando apenas sua própria força de trabalho. Segundo, tornando-se formalmente livres das relações jurídicas entre servos e senhores. Sem essas amarras, podem dispor de sua capacidade de trabalhar em troca de uma remuneração, numa relação de troca em um tipo de mercado específico: o mercado de trabalho. Em terceiro lugar, o trabalho passa a ter como objetivo principal a produção de mercadorias, obscurecendo sua dimensão concreta de criar utilidades necessárias à vida humana.

card do curso

Título: Ordem social produzida pelo capitalismo
Fonte: Prosa (2025c).

A presunção da existência de relações entre seres sociais livres e iguais esconde as relações hierárquicas próprias do capitalismo e sua lógica de funcionamento fundamentada na expropriação, na extração de mais-valia, na apropriação da riqueza e sua concentração. Cabe ao processo educativo justificar essa violência primordial e impedir que “as massas que produzem a riqueza assumam o comando dessa produção” (Fontes, 2021, p. 537).

Para tanto, a pedagogia do capital assume apresentações e formatos variados caracterizados pelos viés cientificista e naturalizante, ou seja, busca encontrar na natureza justificações para os fenômenos sociais. O processo educativo também se fundamenta na ideia da existência de uma natureza humana  estática. Dessa natureza, derivam as desigualdades sociais, sendo também a origem da propriedade capitalista. Assim, a realidade é vista como resultado de um processo natural e inquestionável, produto dessa natureza humana.

O trabalho pedagógico do capital desarticula e suprime os questionamentos à estrutura social e às desigualdades existentes na sociedade, naturalizando-as. Logo, suas finalidades pedagógicas assumem conteúdos distintos em cada momento histórico. André Martins e Lúcia Neves (2012, p. 542) apontam que, em uma primeira fase, a pedagogia dominante teve como foco demonstrar a superioridade do capitalismo em relação ao socialismo. Em uma segunda fase de seu delineamento, iniciada na última década do século XX quando se encontrava consolidado o estágio neoliberal, a pedagogia do capital alterou seu foco para a construção de um ideário que aponta o capitalismo como a “única solução possível” para a humanidade.

Tal assertiva está no coração do slogan utilizado pela ex-primeira-ministra do Reino Unido, Margaret Thatcher: “não há alternativa” (“there is no alternative”). A frase foi cunhada pelo liberal clássico Herbert Spencer, como argumento de que o liberalismo econômico seria a única forma de economia possível. Thatcher a usou no sentido de que não existiria alternativa à economia de mercado, à globalização, às privatizações etc., e o único caminho seria a adoção do receituário neoliberal.

A pedagogia do capital reforça a crença de uma indestrutibilidade desse sistema que parece ter poder sobre tudo e todos, apropriando-se e esvaziando os sentidos dos lemas e das lutas sociais. Faz crescer a sensação de impotência, o pessimismo, o cinismo, a apatia, apagando a consciência de que a humanidade é produção humana por meio do trabalho e que, portanto, como seres histórico-sociais ativos, somos capazes de agir sobre a realidade e transformá-la.

Para aprofundar a reflexão a respeito da pedagogia do capital, sugerimos a live A lógica empresarial na educação à serviço do retrocesso (UERN, 2020), com a participação do professor Dr. Luiz Carlos de Freitas (Unicamp). 

 

Lutas por uma pedagogia do trabalho

É importante demarcar que, apesar do domínio da perspectiva do capital, a história da EPT no Brasil também traz iniciativas e projetos orientados pela ótica dos trabalhadores e das trabalhadoras. Para esses, a formação profissional assume um caráter radicalmente diferente, sendo concebida como processo emancipatório.

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Título: As três linhas de proposições sobre educação nos movimentos operários europeus
Fonte: Cattani e Ribeiro (2011); Gramsci (2007);  Nadezhda (2020); Mayall (2023).
Elaboração: Prosa (2025d).

No Brasil, as propostas educativas dos grupos anarcossindicalistas predominaram nos movimentos sindicais no início do século XX. Dessa forma, a educação assumia função primordial na conscientização, na constituição de novas formas de compreender o mundo e na formação do ideal revolucionário. Os anarquistas no Brasil se orientaram pela pedagogia libertária, com a proposição de escolas autônomas e autogeridas. A forte repressão dos movimentos sindicalistas pelo Estado, no início do século XX, e a criação do sindicalismo oficial, no Estado Novo, inibiram a difusão dessas experiências, modificando a natureza e o conteúdo dos cursos (Manfredi, 2016).

Nas décadas de 1980 e 1990, surgiram novas experiências de formação profissional no âmbito do movimento sindical. Dentre essas, destacamos o “Programa Integrar” desenvolvido pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), a partir de 1996, e que se tornou referência nos debates sobre educação integral, inspirando projetos posteriores. Nos anos 2000, o Integrar e outros nove programas passaram a compor o Projeto Nacional de Educação Profissional (PNEP) da CUT.

O PNEP é herdeiro das tradições libertárias, marxistas e socialistas. Tem como fundamento o compromisso de construção de alternativas ao capitalismo e a compreensão da educação como direito e condição necessária para participação ativa nas políticas e pleno exercício da cidadania. A Educação Profissional é concebida como parte de um projeto educativo global e emancipado cujo objetivo é “contribuir para a formação de trabalhadores tecnicamente competentes e politicamente comprometidos com a luta pela transformação da sociedade” (Manfredi, 2016, p. 198).

Na reorientação das políticas de EPT, a partir de 2003, o Ministério da Educação (MEC) promoveu uma série de ações, dentre as quais a construção de um novo referencial político-pedagógico. Esse trabalho compreendeu a realização de debates com a participação de pesquisadores, gestores, professores e outros profissionais envolvidos com a temática. Os documentos produzidos para a redefinição do quadro conceitual e político apontam a perspectiva da formação integral como eixo central.

Antiga reivindicação dos movimentos popular e sindical, essa perspectiva de formação humana se orienta para a emancipação social e política. O novo quadro referencial trazia, também, as concepções: do trabalho, da ciência e da tecnologia como categorias indissociáveis da formação humana; do trabalho como princípio educativo; e da pesquisa como princípio pedagógico.

Uma pedagogia do trabalho deve contribuir para o estabelecimento de novos modos de pensar, sentir e conhecer. Deve propiciar a retomada do domínio do conteúdo do trabalho, uma vez que o conhecimento  (Ciência e Tecnologia) tem sido apropriado como força produtiva a favor do capital. O domínio desse conteúdo é essencial para a “substituição do indivíduo fragmentado pela divisão capitalista do trabalho pelo indivíduo integralmente desenvolvido” (Kuenzer, 2011, p. 56, grifo nosso).

Podemos encontrar várias práticas inspiradoras atuais que, mesmo limitadas pelas contradições presentes nas relações entre trabalho e educação no capitalismo, assumem como perspectiva a pedagogia do trabalho. Esse é o caso de iniciativas na educação do campo, por exemplo, que utilizam a pedagogia da alternância, na qual o trabalho pedagógico é distribuído em tempos na escola e na comunidade, respeitando a realidade das comunidades e promovendo, entre outras conexões, o diálogo entre saberes tradicionais e os saberes disciplinares. Em geral, esses cursos estão orientados pelos princípios da educação popular e têm como desafio a produção de tecnologias adequadas às demandas da vida campesina.

No próximo capítulo, veremos um exemplo prático de como princípios mais amplos aliados à perspectiva da pedagogia do trabalho podem ser incorporados em um PPC explicitando sua orientação político-pedagógica.