O caráter político-pedagógico do PPC
São comuns as perguntas sobre como elaborar, acompanhar e avaliar um PPC. Em um primeiro momento, podem parecer preocupações meramente operacionais, apenas uma busca por soluções práticas. No entanto, são inquietações legítimas de todos que buscam não somente orientar-se sobre a construção de um PPC, mas também sobre como fazer para que as intenções, necessidades e expectativas presentes no projeto se materializem no cotidiano educacional.
Apesar das exigências no âmbito regulatório, que dispõem sobre o conteúdo e organização do PPC para os diferentes tipos de curso, não existe uma norma específica que defina um único caminho para sua elaboração. Além do mais, as opções políticas, teórico-metodológicas, epistemológicas e pedagógicas fazem com que cada projeto seja único.
Nos primeiros passos desse caminho, convém retomar algumas questões básicas. Dessa forma, identificar os sentidos que atribuímos a cada um dos termos pode contribuir para a explicitação de nossa compreensão acerca do que concebemos como um PPC.
Título: O que é um projeto político-pedagógico?
Fonte: Schüler (2023a); (2023b); (2023c).
Elaboração: Prosa (2025d).
A palavra 'projeto' vem do latim projectum, de projicere. O prefixo pro significa “à frente”, e jacere significa “lançar”/“atirar”. Encontramos, portanto, o termo ‘projetar’ nos sentidos de atirar para longe, arremessar, incidir, prolongar-se. Também no sentido da fama, de projetar-se no mundo, de se notabilizar. Ou seja, projetamos algo partindo de um lugar (as condições reais, concretas, o que está instituído) e miramos sua extensão em outro (o que se quer construir).
O termo carrega em si a ideia de movimento, do que existe para o que se quer alcançar, e presume planejamento, com a tomada de decisões acerca dessa trajetória. Projetar é um processo de sistematização da ação futura que se dá no entrecruzamento de vários processos interdependentes, entre os quais estão: o diagnóstico e a compreensão das demandas, a mobilização, a participação e a negociação. O projeto resultante desse processo se constitui como um instrumento teórico-metodológico dinâmico. Pela natureza do projeto, a construção de um PPC pode orientar-se por distintas perspectivas e dar-se por diferentes caminhos – a depender de nossos compromissos com a formação humana e a transformação social.
Pensemos agora sobre a dimensão política desse projeto. O termo ‘política’ deriva do grego politeía, que indicava procedimentos relativos à polis. De forma resumida, podemos dizer que a dimensão política diz respeito ao coletivo, às relações sociais, tanto à criação de regras como também espaço de escolhas, de estabelecimento de compromissos (Rios, 2011). Podemos entender a política como uma forma de existência no comum, no coletivo, um componente da questão humana. O educador e escritor brasileiro, Moacir Gadotti (1996) nos lembra que não é possível construir um projeto sem uma direção política. A definição de um rumo – de onde se quer chegar e daquilo que se quer alcançar – e as tomadas de decisão (ou a omissão) são atos políticos.
A dimensão política perpassa todo o processo decisório desde a escolha do curso e essa decisão não ocorre de forma neutra: demanda estudo, articulações e uma série de escolhas.
Que atores serão consultados, como serão realizadas essas escutas, em que espaços e com o uso de quais dinâmicas? Será dada maior atenção a alguns deles? Se sim, por quais motivos? O envolvimento da comunidade será apenas para fins de diagnóstico ou ela participará ativa e diretamente de todo o processo?
As opções assumidas em relação a esses e outros aspectos são atos políticos. Esses atos produzem consequências, como a inclusão ou exclusão de minorizados e a convergência ou distanciamento das reais necessidades coletivas das comunidades locais.
Vejamos o caso de uma instituição localizada em uma comunidade em situação de vulnerabilidade socioeconômica e em um território em área de risco ambiental. Após uma série de estudos, essa instituição optou, em seu Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI), pela oferta de um
, voltado para o público da Educação de Jovens e Adultos (EJA) no período noturno.Para a construção do PPC, foram estabelecidas diferentes estratégias de escuta às comunidades interna e externa. As informações obtidas, as articulações realizadas, a observância às disposições legais, entre outros elementos, fundamentaram as decisões tomadas em relação à estruturação do curso, explicitando o compromisso político assumido pela instituição nessa oferta. O fluxo do curso, os componentes curriculares, as ementas, os objetivos e até mesmo as referências bibliográficas indicam o direcionamento político, onde se deseja chegar, o que se quer alcançar com essa formação.
Quanto à dimensão pedagógica, quando dizemos que uma história ou uma atitude é pedagógica, geralmente estamos nos referindo a algo que produz algum tipo de ensinamento e aprendizado. No sentido estrito, o termo diz respeito à pedagogia, entendida como ciência da educação. Entretanto, de maneira mais ampla, a característica do ser pedagógico é a de ocupar-se da educação, compreendida como um fenômeno próprio dos seres humanos, sendo, pois, uma “exigência de e para o processo de trabalho”, e a própria educação um processo de trabalho (Saviani, 2015, p. 286, grifos nossos).
Mas por que utilizar a expressão “político-pedagógico” para os projetos de cursos? Como nos ensinatoda prática educativa possui uma dimensão política, assim como toda prática política possui uma dimensão educativa. Para o autor, a educação cumpre sua função política porque se realiza como prática propriamente pedagógica. Assim como no Projeto Político-pedagógico escolar, deve haver no PPC o compromisso com os interesses reais e coletivos. Trata-se de um compromisso ético-político, no qual o caráter político-pedagógico se materializa.
,Cabe lembrar que a Política Nacional de Formação de Profissionais para a EPT se orienta por uma perspectiva de formação integral e emancipatória. Volta-se à formação de profissionais engajados com a tarefa de construção de projetos pedagógicos pautados na ideia de transformação social, e na necessidade de desenvolver, em cada estudante, sua capacidade de compreensão da realidade de forma crítica, como produtores e sujeitos da história.
O documento com as Diretrizes Gerais da Política Nacional enfatiza a necessidade do constante aprimoramento dos quadros das várias instituições que compõem as redes de EPT, para que suas ofertas “sejam sempre fundamentadas nos objetivos de formar profissionais capacitados, críticos, humanistas e conscientes da realidade e dos desafios da sociedade brasileira” (Brasil, 2024, p. 15). Nas justificativas da referente política, encontramos que:
As exigências de um novo perfil de formação para esses/as profissionais demandam currículos que assegurem o trabalho como princípio educativo e a sua integração com a ciência, a tecnologia e a cultura. Requerem currículos e processos pedagógicos concebidos de modo a contemplar e a concretizar a perspectiva da formação humana integral e emancipatória, de modo a proporcionar uma base unitária ciente da necessidade de reconhecer e de valorizar as singularidades dos grupos sociais e suas aproximações recíprocas, tendo em vista a construção de sínteses das diversidades
Almeja-se que toda oferta pública de EPT parta da perspectiva da formação integral, permitindo aos educandos o desenvolvimento de suas potencialidades. A realidade contemporânea é marcada pela rápida superação dos conhecimentos e das tecnologias. Nesse contexto, a criatividade e a profunda compreensão dos processos humanos, incluindo os produtivos, são atributos necessários a todos e todas que desejam agir no mundo e transformá-lo. Por esses motivos, entende-se que formação em EPT deve seguir os princípios de:
Título: Princípios da formação em EPT
Fonte: Prosa (2025e).
No próximo capítulo, aprofundaremos esses princípios sob a luz da pedagogia histórico-crítica. Por ora, destacamos a formação integral como proposição voltada à promoção da autonomia e emancipação.
Gaudêncio Frigotto e Ronaldo Araújo (2018, p.252), no texto Práticas pedagógicas e ensino integrado, abordam as questões do ensino integrado e observam que “o desenvolvimento de práticas pedagógicas integradoras não depende apenas de soluções didáticas, elas requerem principalmente soluções ético-políticas”. Em relação à construção de PPC, concordamos com esses autores que é fundamental o compromisso com a formação dos trabalhadores e “a articulação dos processos de formação com o projeto ético-político de transformação social” (2018, p. 257).
Na continuidade deste capítulo, abordaremos a construção coletiva de um PPC.