O PPC como construção coletiva

Falamos anteriormente que a construção do PPC, também seu acompanhamento e sua revisão, desenrola-se em um campo de disputas entre diferentes concepções e interesses. Ressaltamos a necessidade desse processo ser uma ação coletiva, dialógica e participativa dentro da perspectiva de uma gestão democrática. Os vários segmentos possuem diferentes funções e podem contribuir com base em suas realidades e demandas. Porém, promover espaços de participação e mobilizar as comunidades interna e externa no desenho de um curso não é uma tarefa simples.

Projetos coletivos exigem que saibamos o ponto comum do qual todos partem, e o destino comum ao qual todos querem chegar. Sob o risco de termos um aglomerado de projetos particulares, partindo de pontos distintos e buscando coisas diferentes. É certo que o coletivo é uma constelação de subjetividades, uma reunião de pessoas com suas singularidades em suas individualidades; no entanto, é necessário distinguir entre a individualidade e o individualismo.

A individualidade é adquirida na vida em sociedade. Cada um de nós possui singularidades, aspectos que nos distinguem das demais pessoas, tornando-nos únicos. Como afirma o filósofo Antonio Gramsci,

a síntese dos elementos constitutivos da individualidade é “individual”, mas ela [a individualidade] não se realiza e desenvolve sem uma atividade para o exterior, atividade transformadora das relações externas, desde as com a natureza e com outros homens – em vários níveis, nos diversos círculos em que se vive até a relação máxima, que abraça todo o gênero humano. Por isso, é possível dizer que o homem é essencialmente “político”, já que a atividade para transformar e dirigir conscientemente os seres humanos realiza a sua “humanidade”, a sua “natureza humana”

(Gramsci apud Rios, 2011, p. 68).

Por outro lado, o individualismo está fundado na ideia de que os indivíduos são marcados naturalmente por seus atributos – o que os levaria a ocupar posições sociais diferentes, justificando a divisão social. Essa linha de pensamento nos conduz à compreensão do indivíduo como responsável por seu sucesso ou seu fracasso social.

Nada mais oposto que individualidade e individualismo: nossa sociedade tem sido marcada pela intensificação do individualismo e a destruição da individualidade. Se quisermos promover uma sociedade de iguais, fraterna e solidária, precisamos refletir sobre quais são os valores que permitiriam tal transformação. Entre eles, encontramos a colaboração, a cooperação e a autogestão tomadas de forma crítica às práticas individualistas.

card do curso

Título: A individualidade e o individualismo
Fonte: Prosa (2025f).

Com essas ideias, buscamos reforçar a dimensão coletiva do processo de projetar algo, e que deve constar na concepção de um PPC. É essa dimensão coletiva que imprime a potência da direção da projeção e a firmeza e a consistência da base a partir da qual se projeta.

O trabalho coletivo e colaborativo exige ações intencionalmente organizadas, planejadas e sistematizadas para a realização de práticas transformadoras, no sentido da práxis. O filósofo Adolfo Vázquez (2011, p. 30) utiliza o termo práxis “para designar a atividade consciente objetiva, sem que, no entanto, seja concebida com o caráter estritamente utilitário que se infere do “prático” na linguagem comum”.

A questão, portanto, localiza-se na relação teoria-prática. Ainda com Vázquez (2011, p. 236), vemos que a atividade filosófica transforma nossa concepção de mundo, dos seres humanos e da sociedade, porém não modifica a realidade por si. Para o autor,

A teoria em si – nesse como em qualquer outro caso – não transforma o mundo. Pode contribuir para sua transformação, mas para isso precisa sair de si mesma e, em primeiro lugar, tem de ser assimilada pelos que hão de suscitar, com seus atos reais, efetivos, essa transformação. Entre a teoria e a atividade prática transformadora [a práxis] se insere um trabalho de educação das consciências, de organização dos meios materiais e planos concretos de ação; tudo isso como passagem para indispensável para desenvolver ações reais, efetivas

(Vázquez, 2011, p. 237).

Assim, é necessário contar com pessoas que se integrem ao trabalho de construção, avaliação ou revisão de um PPC numa atitude filosófica, ou numa práxis reflexiva, e, ainda, com a assimilação desse novo conhecimento ou consciência da realidade, antecipando idealmente sua transformação, em uma práxis criativa.

Considerando que docentes e discentes em suas práticas sociais são produtores de conhecimentos, temos que o cotidiano é um ponto de partida para a reflexão. Sua problematização é passo para a superação da prática reiterativa, para consciência de como essa realidade se constitui histórica e socialmente e para a imaginação de possibilidades de intervenção e transformação.

 

Considerações finais

Neste capítulo, nos dedicamos a refletir sobre as dimensões conceituais e as finalidades de um PPC ao trazermos alguns elementos formais desse instrumento de planejamento e organização do trabalho pedagógico. Ainda, discutimos suas finalidades para além do simples cumprimento de exigências regulatórias, e indicamos o currículo como arena política, espaço de expressão das relações de poder. Apontamos o fato de que o PPC consubstancia o currículo, sendo sua construção atravessada por tensões, contradições e concepções em disputa.

Em seguida, tecemos considerações sobre os sentidos do PPC. Buscamos refletir sobre cada um dos termos (projeto, político e pedagógico) e esclarecer as motivações para o uso dessa denominação para projetos de curso. Destacamos a necessidade de pensar sobre o PPC, considerando a perspectiva de formação integral e emancipatória que orienta a Política Nacional de Formação de Profissionais para a EPT. E, por fim, ressaltamos como é fundamental o compromisso com a formação dos trabalhadores e com a transformação social.

Na última seção, nos detemos na necessidade da construção coletiva, dialógica e participativa do PPC ante a uma realidade em que predomina o individualismo e os interesses particulares. Concluímos discorrendo sobre a necessidade de ações intencionalmente organizadas e sistematizadas para a realização de práticas transformadoras, no sentido da práxis, compreendendo a prática social cotidiana como ponto de partida e de chegada de uma rota de desenvolvimento da autonomia e emancipação.

No próximo capítulo, abordaremos as perspectivas em disputa na organização do trabalho pedagógico na EPT: as que pretendem a adaptação e conformação dos seres humanos à realidade dada (hegemônicas), materializadas na pedagogia do capital; e as que ambicionam a transformação social em uma perspectiva emancipatória (contra-hegemônicas), expressas na pedagogia do trabalho. Nesse caminho, aprofundaremos no PPC, considerando os princípios da EPT manifestos na Política Nacional de Formação de Profissionais para a Educação Profissional e Tecnológica.