Formação docente e consciência de classe: construindo uma educação crítica e transformadora

Os docentes da EPT (quanto à formação inicial) são licenciados, bacharéis e tecnólogos oriundos de todas as áreas do conhecimento, mas com algo em comum: em geral, em suas formações não tiveram a EPT como objeto de estudo. Além disso, os bacharéis e tecnólogos não se formaram para ser docentes, de maneira que suas trajetórias acadêmicas não lhes proporcionaram acesso aos conhecimentos da ciência da educação em geral, nem particularmente aos da EPT. Isso significa que, em suas formações iniciais, não tiveram acesso aos conhecimentos que fundamentam o projeto de ensino integrado nos termos aqui discutidos.

Como a EPT, por sua natureza, abriga profissionais de todas as áreas do conhecimento, ela abarca diferentes (e até antagônicas) compreensões de sociedade, de ciência, de tecnologia, de trabalho, de cultura e de formação humana. Evidentemente, esse é um problema para a materialização de uma práxis coletiva integradora e transformadora, como destaca a professora e doutora em educação Acácia Zeneida Kuenzer (2013), na palestra "Formação de professores: integração entre a educação básica e a educação profissional" a partir do trecho 1:01:20.

Título: Formação de professores integração entre a educação básica e a educação profissional
Fonte: IFRN Câmpus Natal (2015).

Em razão do exposto, a formação continuada em larga escala é uma possibilidade de proporcionar a apropriação coletiva sobre os princípios e fundamentos do ensino integrado. Por outro lado, é importante compreender que essa formação não garantirá o compromisso de todos com esse projeto formativo. Uma coisa é estudá-lo teoricamente; outra coisa é internalizá-lo para que possa ser incorporado às práticas educativas, construindo a unidade teoria-prática na perspectiva da práxis transformadora.

A formação, isoladamente, não vai introjetar consciência no docente que não tem clareza sobre seu pertencimento à classe trabalhadora, tampouco o compromisso que ele precisa ter enquanto agente ativo na formação dos sujeitos de sua própria classe. Mas, se o projeto de EMI almeja a emancipação humana, que só é completamente possível com a superação do modo de produção capitalista, esse é um aspecto crucial e de difícil solução, pois, como adverte Lukács, no primeiro capítulo de Consciência de Classe (1960),

a luta para o estabelecimento dessa sociedade [...] não é apenas uma luta contra o inimigo exterior, a burguesia, mas simultaneamente uma luta do proletariado contra si mesmo: contra os efeitos devastadores e degradantes do sistema capitalista na sua consciência de classe (n.p.).

Como se vê, Lukács deixa claro que, para atuar em um projeto transformador e revolucionário, a consciência de classe é condição sine qua non , mas não está dada. 

Há espaços mais propícios para que se desenvolva a consciência de classe dos trabalhadores. No Brasil, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é estruturado com fundamento na luta de classes, de forma que essa consciência é inerente a todas as suas ações, inclusive aos processos de formação profissional de seus integrantes. 

A educadora Roseli Caldart (2008), ao discutir o projeto político-pedagógico da Educação do Campo, situa essa modalidade de ensino como parte do movimento amplo de luta por emancipação social. Nesse sentido, afirma que é essencial que a escola 

[...] garanta o acesso do conhecimento socialmente útil à classe trabalhadora de forma a garantir sua instrumentalização frente ao fato de que não é possível realizar uma transformação social, ou alcançar o poder popular sem educação que possa garantir um processo de construção da consciência de classe (p.76).

Para que a escola consiga cumprir esse papel de construção da consciência de classe de seus estudantes, é pressuposto que os docentes tenham essa consciência. No âmbito da Educação do Campo, especialmente a proporcionada pelo MST, essa consciência de classe dos docentes é uma realidade. A luta pelo direito à terra e à estreita vinculação entre o trabalho e a educação nessa esfera potencializam essa construção da consciência.

Nota-se que, nesse caso, encontramos os três elementos centrais para que seja possível materializar um projeto formativo com fundamento em uma práxis transformadora: o projeto em si; os profissionais envolvidos, incluindo a gestão (nesse caso, as lideranças do MST); e as condições materiais.

Na EPT desenvolvida nas redes públicas, a situação é diferente. Ainda não conseguimos avançar coletivamente na defesa do projeto de ensino integrado. Muitas vezes há a defesa, mas sem a devida compreensão e domínio de seus princípios e fundamentos. E mesmo quando esses fundamentos são compreendidos, frequentemente não se traduzem em uma práxis transformadora.

O docente da EPT não é culpado por isso. É o metabolismo do capital que se impõe e domina ideologicamente a maior parte da população, conformando-a à sua racionalidade e incluindo parte dos docentes e gestores que atuam nessa modalidade. Nesse contexto, na educação em geral e na EPT, a formação para o mercado com base na pedagogia das competências é hegemônica – enfatizando as socioemocionais.

Essa hegemonia não ocorre de forma mecânica e absoluta: há uma disputa por outro projeto societário, e o ensino integrado é parte de sua materialidade. Portanto, reconhecer essas fragilidades é essencial para que possamos nos fundamentar e nos instrumentalizar visando minimizá-las ou, quiçá, eliminá-las.

Insistimos que a formação docente é uma possibilidade nessa direção (em que pese suas limitações), para operar no sentido de desenvolver a consciência de classe, elemento essencial para materializar uma práxis transformadora coletiva . Cabe destacar que essas limitações não a invalidam; pelo contrário, reforçam sua relevância, pois representam uma oportunidade de ampliação do grupo de docentes comprometidos ética e politicamente com o projeto formativo do ensino integrado.

A inexistência de processos formativos dos docentes da EPT de maneira sistematizada e continuada significa não lutar pela possibilidade de construção dessa práxis transformadora coletiva. 

Em vista do que foi discutido, convidamos você a intensificar a defesa do projeto de ensino integrado. Para isso, é imprescindível apropriar-se de seus fundamentos e ter disposição para assumi-los como orientadores da sua ação teórico-prática. Nós temos a capacidade de construirmos nossa própria história e, em consequência, da humanidade, em direção a sua humanização plena e em sentido oposto à opressão imposta pela sociabilidade do capital. 

Para refletir: que cidadão estamos formando?

Convidamos você a responder as seguintes perguntas e refletir acerca das pedagogias, didáticas e ideias que fundamentam sua prática docente. Lembre-se de registrar as respostas em seu Memorial e de seguir as instruções de seu tutor: 

  • Você conhece os princípios que fundamentam o ensino integrado da instituição de EPT na qual você trabalha? Esses princípios se baseiam na concepção de formação humana integral a partir da omnilateralidade, da politecnia e da escola unitária discutidos aqui e neste curso como um todo? Ou será que estão mais próximos da concepção de formação para atender aos interesses do mercado?
  • Onde você consegue visualizar, a partir de sua prática profissional, como o projeto político orientador da instituição em que você trabalha se relaciona ou interfere no seu cotidiano enquanto docente? E nas políticas e organização da instituição?
  • Você já fez cursos de formação continuada sobre o EMI? Caso não tenha feito, considera importante que a instituição na qual você trabalha proporcione esse tipo de curso aos professores? Por quê? Agora, se já tiver feito: como você avalia a contribuição desses cursos para a melhoria de suas práticas educativas na perspectiva da práxis transformadora como discutida neste capítulo? Poderiam ser melhores? O que poderia aperfeiçoá-los?
  • Na instituição na qual você trabalha, o Projeto Político-Pedagógico e os PPC do EMI se fundamentam na pedagogia das competências? Em caso afirmativo, o que você opina sobre isso? Você se baseia na pedagogia das competências para desenvolver suas práticas educativas? Se o faz, peço que dê exemplos de práticas educativas integradoras desenvolvidas por você com base na pedagogia das competências. Agora, peço que reflita sobre se os exemplos que você relatou são compatíveis com a discussão feita nesta UT sobre práticas educativas integradoras fundamentadas no conceito de práxis transformadora.

Para complementar a discussão, sugerimos assistir às seguintes palestras:

"O Ensino Médio Integrado frente à Pedagogia das Competências: que cidadão estamos formando?", organizada pelo IFRO câmpus Porto Velho Calama, e ministrada pela Prof.ª Dr.ª e pesquisadora Marise Ramos (2021).

"Aprendizagem Operacional X Preparo Intelectual? Os desafios da EPT no Brasil", organizada pelo movimento “Por Uma Escola Popular", no Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica e Profissional (MEP SINASEFE) e ministrada pela Prof.ª Dr.ª e pesquisadora Maria Ciavatta (2020).