Alguns exemplos para refletir
É importante destacar que a maioria dessas práticas e suas respectivas análises, embora se fundamentem na relação teoria-prática e na interdisciplinaridade, não ultrapassam os limites didáticos e pedagógicos. Em geral, partem de temas geradores que envolvem disciplinas da FGB e dos eixos tecnológicos dos cursos e têm como objetivo resolver ou mitigar determinado problema. Entretanto, não avançam na perspectiva transformadora da realidade.
Alguns exemplos concretos ajudarão você a compreender melhor o que acabamos de anunciar. Nas três experiências que serão apresentadas a seguir, não identificaremos os IF onde foram desenvolvidas.
1) Em um Projeto Integrador (PI) que visa a promover o diálogo interdisciplinar entre as áreas das ciências sociais, humanas, linguagens e a área técnica de um curso integrado de Eletrotécnica, o objetivo foi promover a conscientização sobre o uso racional da energia elétrica e sua importância para o meio ambiente. Segundo o relato, esse projeto proporciona aos estudantes “conhecimentos sobre tecnologias possibilitadoras de maior sustentabilidade quanto ao uso de energia elétrica nas residências e seus impactos no desenvolvimento social” e “contribui para uma prática significativa na vida como futuros profissionais técnicos em eletrotécnica”.
2) O segundo exemplo aborda um PI que teve como objeto o uso de bioinsumos, a potencialidade das Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC) e o armazenamento de água no solo na produção agropecuária sustentável. De acordo com a descrição, as disciplinas de Geografia, Biologia, Sociologia, Culturas Anuais, Produção Animal e Administração Rural foram envolvidas. Ainda, segundo o relato, o objetivo foi o desenvolvimento, pelos estudantes, de habilidades de naturezas diversas, especialmente daquelas relacionadas às áreas contempladas no projeto. Os resultados apresentados pelos estudantes em suas equipes evidenciaram uma mudança de paradigma quanto à compreensão de aspectos relacionados ao uso de recursos naturais e à correlação entre teoria e prática, além de ganhos nas habilidades comunicativas.
3) Um terceiro caso relata uma experiência de Prática Profissional Integrada (PPI) realizada em um Curso de EMI em Desenvolvimento de Sistemas em torno do tema “comunicação, pós-verdade e notícias falsas”. Envolveu as disciplinas História, Física, Matemática, Língua Portuguesa, Sociologia, Filosofia, Análise de Sistemas, Linguagem e Técnicas de Programação, Modelagem de Dados e Banco de Dados. O escopo do PPI foi discutir a revolução digital propiciada pela internet que dinamizou as comunicações, acelerou as interações sociais e democratizou o acesso à informação, mas, ao mesmo tempo, atenta contra a privacidade das pessoas, reaviva intolerâncias e preconceitos, lesa conquistas civilizatórias e amplifica notícias falsas. Segundo o relato, a PPI consistiu na produção de um boletim por grupos de estudantes, cuja proposta editorial estivesse comprometida a veicular o impacto das mudanças dos paradigmas de comunicação nas relações humanas e na vida em sociedade.
Esses são apenas três exemplos envolvendo dois PI e uma PPI em Institutos Federais, mas são vastíssimos os exemplos semelhantes. Observe que essas práticas anunciam um problema real e significativo existente na sociedade e promovem a reflexão crítica sobre ele, assim como instigam ações destinadas a mitigar o problema. Nessa perspectiva, as propostas têm a potencialidade de avançar na relação teoria-prática e na interdisciplinaridade, mas, conforme afirmamos anteriormente, isso não ocorre na perspectiva da práxis transformadora porque se centram na parte visível “a olho nu” dos fenômenos abordados (aparência), não conseguindo chegar à sua essência.
Na primeira iniciativa, que trata do uso racional da energia elétrica, poderíamos partir de perguntas como:
- Quais são as distintas fontes primárias utilizadas na produção de energia elétrica que você conhece e quais são as consequências do uso de cada uma delas sobre o meio ambiente?
- As fontes de energia elétrica denominadas de verdes ou limpas (eólica, por exemplo) estão realmente isentas de promoverem danos ambientais?
- Em uma sociedade que se fundamenta no consumo exacerbado de tudo, inclusive de energia elétrica, o que significa um uso racional de energia elétrica? É possível alcançá-lo em sua plenitude sob a égide do capital?
No segundo, poderíamos questionar:
- É possível a utilização de bioinsumos, PANC e o armazenamento de água no solo na produção agropecuária em larga escala sob a hegemonia do agronegócio?
- O que é agropecuária sustentável? Ela é possível em uma sociedade capitalista?
E em relação ao terceiro projeto:
- A quem interessam as notícias falsas? Em uma sociedade em que tudo é desregulamentado por imposição do neoliberalismo visando fortalecer o “livre mercado”, é possível controlá-las?
Neste momento, é preciso retomar algo que já discutimos nos capítulos anteriores, como a dificuldade de desenvolver um trabalho coletivo docente quando, na EPT, as trajetórias acadêmicas, pessoais e profissionais, são muito distintas. Isso dificulta a existência de uma base epistemológica comum para abordar os problemas a serem tratados. Esse é, inclusive, um grande obstáculo para uma compreensão aprofundada sobre os princípios e fundamentos do EMI.
A questão fundamental que obstaculiza essa base epistêmica comum está intimamente ligada à questão da consciência de classe e à ausência dela em grande parte da docência e entre os gestores, conforme discutimos no capítulo 2.
É por essa razão que as atuações que mais se aproximam dessa práxis transformadora na RFEPCT ocorrem em experiências localizadas. Destacamos aqui outros exemplos realizados em colaboração com o MST, como, por exemplo, no IFC/Abelardo Luz e no IFPA/Castanhal.
Quanto ao IFC/Abelardo Luz, Cherobin (2020), em sua tese de doutorado – na qual investigou cursos de EMI do Campus Avançado do Instituto Federal Catarinense (IFC) da Escola de Ensino Médio Paulo Freire (EEM), desenvolvidos no território Abelardo Luz em articulação com o MST –, conclui que, apesar de algumas dificuldades, a materialização das escolas foi efetivada por meio do
[...] vínculo com a história, luta, resistência e organização das famílias, ela se constitui como possibilidade de elevação da consciência política e social dos jovens, o que representa um enfrentamento aos interesses capitalistas, pois, [...] se apresentam como pontos de resistência da classe trabalhadora representando um enfrentamento aos interesses do sistema capitalista, por isso são disputados
Título: Educação Profissional e Tecnológica integrada ao Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra
Fonte: Gaia Schüler (2023h, 2023i, 2023j); Geraldo Magela (2014); Mídia Ninja (2014)
Elaboração: Prosa (2025c).
Em relação a essa pesquisa, cabe destacar que inclui uma escola estadual, o que é muito significativo, dada a escassez de pesquisas sobre práticas educativas integradoras na EPT nas redes estaduais, conforme já discutimos neste capítulo. Também é preciso realçar sua particularidade, pois é uma escola situada em território vinculado ao MST.
Na mesma direção, Araujo e Costa (2017) afirmam, sobre a experiência do IFPA/Castanhal, que seus aspectos positivos estão relacionados com a presença de estudantes provenientes de movimentos sociais como o MST pelo fato de o curso ter sido ofertado por meio de convênio com esse Movimento. Para os autores, “tais fatores contribuíram para a construção de uma proposta pedagógica de ensino integrado politicamente engajada com a valorização da cultura do campo” (p. 123).
Essa vinculação orgânica do MST com a luta pela terra como forma de sobreviver é terreno fértil para a construção da consciência de classe, o que, de certa forma, constitui-se como uma determinação para as práticas educativas dos docentes das escolas envolvidas. Entretanto, é importante mencionar que há limitações, pois não são escolas do próprio MST, espaço em que a consciência de classe dos docentes é condição sine qua non .
Conforme discutimos no capítulo 2, avançar na construção da consciência de classe não é tarefa simples, e processos sistemáticos de formação continuada dos docentes podem contribuir para construir uma base epistemológica comum acerca dos princípios que sustentam o currículo integrado. Isso fortalece, consequentemente, o compromisso ético-político com a formação integral da classe trabalhadora e, por esse caminho, a possibilidade de lograr algum êxito em direção à consciência de classe.
Apesar das dificuldades aqui discutidas, podemos afirmar que há um grande esforço dos IF no sentido de avançar na materialização de práticas educativas integradoras. O fato incontestável de que o tema está na pauta de todos os IF é muito positivo. A forma e o conteúdo com que cada instituição e campus vai avançando depende da realidade e da construção histórica específica, da correlação de forças internas e externas, enfim, de múltiplas determinações.