Campo qualificação: o lugar da EPT

A EPT é um terreno que se situa no espaço de lutas em prol da formação de trabalhadores e trabalhadoras, que, na teoria de Bordieu, pertence ao campo qualificação, caracterizando-se como interseção e ao mesmo tempo resultante (“vertente”) das lutas nos campos da Produção, da Educação e do Estado. As trocas simbólicas que ocorrem nesses espaços são ressignificadas para dar conta dos debates específicos envolvendo qualificação, ou seja, aspectos concretos das relações entre trabalho e educação. 

No campo qualificação, estão em disputa: 

  • O objetivo da qualificação (incluindo concepção, objetivos gerais e específicos);

  • As estratégias, os conteúdos e as metodologias (incluindo público, espaços, currículos, artefatos pedagógicos e normativas);  

  • O financiamento da qualificação, particularmente o que envolve políticas e recursos públicos. 

Destes três conjuntos de questões nasce a grande maioria das premissas que embasam cada um e o conjunto das decisões governamentais, seja de forma explícita ou implícita. E, nas “batalhas campais”, a vitória passa por exercer a hegemonia, por meio da violência simbólica, pelo convencimento ou mesmo pela coação – aqui incluído tentar “aniquilar” o inimigo pelo afastamento físico, pela detração das concepções e ações – e por meio das trocas simbólicas.

Apesar da disputa de concepções e narrativas ser um processo contínuo nos campos sociais, em tempos de crise, a luta simbólica se acirra, tanto no sentido de manter (ou impor) uma nova concepção hegemônica quanto na perspectiva contra-hegemônica de questionar o estabelecido e defender os terrenos conquistados em lutas anteriores.

Neste acirramento ocorrem intensas trocas simbólicas, nas quais nada é por acaso. Mesmo a aparente neutralidade e/ou ingenuidade serve a um dos lados. No infográfico abaixo é possível observar alguns exemplos comuns dessas trocas.

Título: Práticas comuns de trocas simbólicas
Fonte: Prosa (2025d).

Entretanto, é impossível conciliar antagonismos sociais sem perder a essência e a identidade contra-hegemônicas. Exemplificando as lutas e trocas simbólicas no Campo Qualificação, apresentam-se teorias que advogam “o fim do trabalho” e/ou sua perda de centralidade na vida social. No campo educacional, a rejeição ao papel do trabalho na socialização e na construção das identidades sociais decorre, por desconhecimento ou retórica, de opor-se a “profissionalização tecnicista” (atribuída à EPT) à “formação humanista” (foco da Educação Básica). Isso tem dificultado o entendimento do significado de uma Educação Profissional emancipatória. 

A concepção emancipatória da Educação Profissional em nada contradiz a perspectiva de uma formação humana. Ao contrário, para determinados educadores falta a compreensão de que não pode existir educação integral sem que a dimensão do trabalho seja considerada. Assim, a Educação Profissional deve ser considerada em seus aspectos filosóficos e sociológicos (nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio propedêutico), acrescida dos aspectos científicos, tecnológicos e éticos (na Educação Profissional integrada, concomitante ou subsequente ao Ensino Médio e à Educação de Jovens e Adultos (EJA) no nível fundamental e médio).

Outro exemplo são as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) específicas, “atualizadas” pelo Conselho Nacional de Educação (CNE). A partir delas, o currículo da maioria dos cursos de Pedagogia, por exemplo, atesta o afastamento da dimensão trabalho na formação desses profissionais da Educação.

Consequentemente, estes passam a desconhecer como as injunções do mundo do trabalho interferem na estrutura educacional e no currículo, bem como na organização de seu trabalho e nas práticas pedagógicas cotidianas. 

Do mesmo modo, as DCN para a EPT e para a EJA, no bojo da contrarreforma do Ensino Médio, espelham um retrocesso conceitual e político. Isso ocorre após duas décadas de discussões e avanços gradativos. As “novas” diretrizes enfatizam os aspectos pragmáticos e técnico-instrumentais, ao tempo que oferecem um currículo fragmentado e superficial.

Veja, abaixo, algumas premissas e noções no debate acadêmico e nos discursos e documentos oficiais sobre políticas educacionais e de trabalho, emprego e renda (retomando a discussão conceitual do capítulo 1):

  • Centralidade no indivíduo e elogio à meritocracia em contraposição aos valores da solidariedade, empatia, equidade, justiça social etc.;

  • Mito da gestão privada superior à gestão pública, implicando na perda de autonomia e na transferência de recursos que poderiam ser retroalimentados nas universidades, instituições e órgãos públicos;

  • As tentativas de domesticar o que é emancipatório. Um exemplo é a relação com o pensamento libertador do pedagogo Paulo Freire, cuja força política é atenuada em pretensas homenagens e lembranças de ditos de sua autoria, quase sempre descontextualizados e fragmentados, enquanto a proposta político-pedagógica freireana, apesar de citada, quase nunca é colocada em prática.

  • Noção e modelo de competências construído como matriz formativa fundante do perfil do sujeito trabalhador “empregável”;

  • Empregabilidade como atributo e responsabilidade do sujeito trabalhador, em detrimento da noção de seguridade social coletiva;
  • Empreendedorismo enquanto projeto de vida e solução para o desemprego, que emula o “espírito capitalista” em detrimento de ações associativas e solidárias;

  • Metodologias “ativas”, em oposição à didática de base histórico-crítica, dialética e dialógica.

Obviamente tais questões não são novas, mas são apresentadas como “inovações”, quando na prática representam mais do mesmo: “velhas novidades”. Emolduradas por belas expressões e frases de efeito, passam a frequentar as falas de pessoas tanto do polo hegemônico quanto do contra-hegemônico. 

Quaisquer tentativas de distinguir o sentido desses termos, tão potentes do ponto de vista simbólico, e recolocá-los em seu devido contexto e significado resulta em ataques, sendo o discurso contra-hegemônico acusado de “academicismo”, “discurso ideológico” ou algo do gênero. A desqualificação do opositor como método vai desde os “suaves” apelidos (“freireanos românticos”, “marxistas ultrapassados” etc.) a ações bem mais graves como “cancelamentos” em redes sociais, ações judiciais, execração pública, ou seja, em tudo semelhante a um tribunal de inquisição. Aliás, não é esse o significado e prática do “movimento escola sem partido”? Docentes não estão sendo filmados e constrangidos em sala de aula, acusados injustamente, ameaçados, perseguidos e atacados tanto no espaço virtual como no real?

Um exemplo diretamente ligado à EPT é a utilização frequente do termo “ensino profissionalizante” como sinônimo de Educação Profissional. Parece algo trivial e inocente, ou apenas uma questão semântica ou terminológica, entretanto tem exercido papel importante na luta simbólica. Mesmo não sendo encontrado nas principais legislações educacionais (estudadas nos capítulos 2 e 4), tornou-se de uso corrente.

Geralmente, esse termo refere-se a cursos de curta duração (qualificação profissional ou formação inicial e continuada – FIC), não vinculados à escolaridade e centrados no “saber fazer", com foco no mercado de trabalho imediato e, ainda, utilizados como política compensatória. Historicamente, esse tipo de oferta, no Brasil, está associado a uma educação voltada para as classes subalternas, com o objetivo de capacitar mão de obra para a indústria, comércio e serviços, na maioria das vezes em empregos precários e/ou mal remunerados.

Como foi visto, a Lei nº 5.692/71 estabeleceu a profissionalização como finalidade obrigatória para o Ensino Médio, fazendo com que os cursos se expandissem para além das unidades escolares especializadas (escolas técnicas). Centrado na ideia de “ensino”, sem projeto pedagógico, laboratórios e docentes, o projeto foi um grande fracasso.

O termo “Educação Profissional, ao qual foi acrescentado posteriormente o termo “Tecnológica, é mais amplo, abrangente e consistente. A LDBEN/96 (e suas alterações), ao definir a EPT como “educação” e não apenas “ensino”, apontou para o reconhecimento de algumas questões:

  • As especificidades da modalidade e de sua relação indissolúvel com a Educação Básica, podendo ser oferecida de forma integrada ou concomitante ao Ensino Fundamental e Médio e à EJA;

  • A necessidade de uma carreira docente específica, com respectiva formação inicial e continuada, incluindo a pós-graduação;

  • A importância das instituições especializadas em EPT: IFs, Centros, Escolas Técnicas etc.;

  • A possibilidade de articulação com as universidades para atividades de pesquisa e extensão e de verticalização da Educação Básica para a Superior;

  • Na perspectiva da educação integral dos estudantes, docentes e funcionários, o aprofundamento dos estudos em Filosofia, Sociologia, Psicologia e História da Educação Profissional, além da didática e de metodologias específicas para a modalidade;

  • Além da formação da pessoa e para a cidadania, a formação para o mundo do trabalho, na compreensão da sua totalidade, complexidade e contradições.

Por isso, travar um combate eficiente no plano simbólico deve ser uma tarefa coletiva: passa pela coragem de discordar dos falsos consensos, por desvelar o que está nas entrelinhas e não aceitar a injustiça epistêmica (na qual a fala da autoridade desqualifica o interlocutor subalterno). É, também, alicerçar uma formação sólida com teorias emancipatórias e, sobretudo, perceber que a prática é o mais eficiente critério da verdade.