Tempos ambíguos
O avanço da concepção e dos programas emancipatórios não se deu sem percalços, e as forças hegemônicas conservadoras atuaram em três direções: preservar suas estruturas, desqualificar as ações mais avançadas e estabelecer pontes, mediações e “consensos”, sempre baseados em suas premissas. Nesse movimento, nota-se a ambiguidade: a continuidade de iniciativas emancipatórias acontece junto de novas iniciativas “hibridas”, ou seja, que apresentam elementos emancipatórios, mas permitem a permanência da subalternização.
O desejo de continuidade das políticas sociais do governo sustentou, por um tempo, as iniciativas emancipatórias – afinal, os avanços sociais foram significativos, como a redução da pobreza e a expansão do acesso à saúde e à educação. Neste sentido, continuou-se com a expansão das redes públicas , levando-as a superar, pela primeira vez, a oferta privada de cursos técnicos de nível médio. O processo de expansão da rede federal foi iniciado com a criação de escolas técnicas federais (depois transformadas em IFs) nos estados do Acre, Amapá e Mato Grosso do Sul, bem como no Distrito Federal, por meio da Lei nº 11.534/2007. Do ponto de vista da interiorização, os IFs e as escolas técnicas estaduais formaram uma malha significativa, muito superior à privada. Em sucessivas fases de expansão, as unidades federais (IFs e seus campi) passaram de 140 a 685, sendo a última fase iniciada em 2011.
Fonte: Schüler (2023).
A ampliação da participação da sociedade na elaboração, no acompanhamento e na avaliação de políticas públicas de educação incluiu consultas por meio de audiências públicas, envolvendo movimentos sociais, representantes de trabalhadores e empresários, além dos usuários das políticas. A Educação Profissional pública teve forte presença em eventos gerais e específicos, como a Conferência Nacional da Educação Básica (2008), as Conferências Nacionais de Educação (2010 e 2014), o 1º Seminário Nacional de Educação Profissional (2003), a 1ª Conferência Nacional de Educação Profissional e Tecnológica (2006), o 3º e o 4º Fórum Mundial de Educação (2004 e 2009) e os três Fóruns Mundiais de Educação Profissional e Tecnológica (2009, 2012, 2015).
O Conselho Nacional dos Institutos Federais (CONIF), o Fórum Nacional de Gestores Estaduais de Educação Profissional (FONAGEP), o Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador (CODEFAT) e Comissões Tripartite de emprego estaduais foram fortalecidos e frequentemente consultados sobre ações relacionadas à Educação Profissional, buscando alinhamento da oferta de cursos aos projetos de desenvolvimento nacional. A crescente demanda pela Educação Profissional, impulsionada pelo crescimento econômico e programas de inclusão social, como Fome Zero e Bolsa Família, destacou a necessidade de aprimorar a eficácia e efetividade das políticas de Educação Profissional e Tecnológica.
Como resultado das consultas e das pressões do campo educacional, foram introduzidos na LDBEN avanços importantes relativos à educação em geral, por meio da Lei nº 12.796/2013, retomando elementos das discussões dos anos 1990 e indo além. Algumas destas importantes modificações estão listadas a seguir:
- Educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, ou seja, da Educação Infantil ao Ensino Médio;
- O acesso à Educação Básica obrigatória como direito público subjetivo;
- A Educação Infantil como primeira etapa da Educação Básica;
- A ampliação do atendimento aos educandos com deficiência, na própria rede pública regular de ensino (educação inclusiva);
- A formação inicial de docentes para atuar na Educação Básica estabelecida em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, complementada por meio de cursos de conteúdo técnico-pedagógico, em nível médio ou superior, incluindo habilitações tecnológicas;
- Além da garantia da formação continuada para os profissionais no local de trabalho ou em instituições de Educação Básica e superior, incluindo cursos de Educação Profissional, cursos superiores de graduação plena ou tecnológicos e de pós-graduação.
Foi muito importante, especificamente para a Educação Profissional, a aprovação da Resolução CNE/CEB nº 02/2012 acerca das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (que estabelecia pontes com o Ensino Médio integrado à Educação Profissional) e da Resolução CNE/CP nº 06/2012, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio .
Apesar de haver uma crise econômica estava no horizonte, o cenário para a Educação Profissional antes de 2016 ainda era promissor. O aumento dos investimentos estatais na educação em relação ao PIB, o fundo soberano do pré-sal e a consolidação do FUNDEB assegurariam o financiamento necessário para um passo decisivo que institucionalizaria as políticas de Educação Profissional: o Plano Nacional de Educação 2014-2024 e a implementação do Sistema Nacional. Este sistema contaria com controle social garantido pela realização periódica das Conferências Nacionais de Educação e pela criação do Fórum Nacional de Educação. Todavia, infelizmente, não ocorreu como previsto .
Dessa maneira, a crise política e institucional iniciada em 2013 exigiu a formação de novas alianças, inclusive para ampliar novas iniciativas, de forte impacto e de alto valor simbólico para a população. Tais iniciativas envolveram agentes do polo hegemônico, como os Serviços Nacionais de Aprendizagem, unificados sob a nomenclatura de “Sistema S” (uma ficção institucional, pois tais estruturas têm diferentes origens, tamanhos, legislação específica e autonomia, embora convirjam em gestão e origem dos recursos).
Estas instituições paraestatais, embora tenham uma gestão privada, são mantidas com recursos da contribuição compulsória, de 2,5% na época, sobre a folha de pagamento das empresas de cada setor. Como essa contribuição é incluída no preço dos produtos das empresas e, portanto, repassada ao consumidor, reafirma-se o fato de tais instituições serem mantidas com recurso público.
As ações do governo, no sentido de alinhar as entidades sob gestão empresarial ao desenvolvimento nacional, incluíram negociar maior participação do governo e trabalhadores nos conselhos (mas ainda em minoria absoluta) dos Serviços de Aprendizagem e Serviços Sociais (2006) e estabelecer os “acordos de gratuidade“ (2008), que aumentariam a oferta de cursos de qualificação para os estudantes da rede pública (R$4,8 bilhões, até 2014). Entretanto, a gestão, as estruturas, os conteúdos, as metodologias e principalmente os objetivos da formação voltados para o mercado e para a subalternização permaneceram intactos.
A partir de premissas consistentes (demanda concreta de qualificação, pulverização das ações entre diferentes ministérios e necessidade de alinhamento dos provedores de cursos de EPT às políticas de desenvolvimento inclusivo), foi instituído o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC) pela Lei nº 12.513/2011. Além disso, sob forte pressão por soluções de combate ao desemprego, em particular da juventude, foram elaboradas e promulgadas tanto a Lei nº 12.513/2011, supramencionada, quanto a Lei nº 12.816/2013, que atualizou o PRONATEC, e, posteriormente, o Decreto nº 8.268/2014, que modifica o Decreto nº 5.154/2004. Essas leis exemplificam a atuação híbrida citada anteriormente.
O PRONATEC integrou iniciativas bem-sucedidas, como a ampliação da rede federal e o Programa Brasil Profissionalizado (acordo de gratuidade), entre outras ações, e foi iniciado com a participação das redes públicas e dos Serviços Nacionais de Aprendizagem. Neste momento, o foco era a EP técnica de nível médio, pactuada entre secretarias estaduais de educação (“demandantes”) e redes provedoras (“ofertantes”), o que é, sem dúvida, uma inovação na forma de fazer EPT no Brasil.
Entretanto, a estratégia de implantação e as diretrizes operacionais foram no sentido contrário. Os provedores privados assumiram o protagonismo, captando recursos e exigindo contrapartidas, como a autonomia de criar cursos sem a autorização dos Conselhos Estaduais de Educação e financiamento subsidiado de infraestrutura. O foco, então, se deslocou para cursos de curta duração e, posteriormente, foram incluídas as instituições de ensino superior técnico privado e redes privadas.
Embora os valores e números sejam significativos, os limites logo se revelaram: baixa capacidade de execução dos ofertantes, distribuição regional de recursos assimétrica e falta de comprometimento com os objetivos do programa. Simultaneamente, foi percebida a ausência de estudos consistentes sobre demanda, a influência do setor privado nas tomadas de decisão (enquanto demandante e ofertante), disputas sobre metodologias educacionais e a ausência de um sistema eficaz para avaliar a qualidade dos cursos.
Não houve tempo de corrigir o rumo. As mudanças decorrentes da destituição do governo legitimamente eleito preparam o terreno para as contrarreformas autoritárias – no caso da educação, as Leis nº 13.415/2017 e nº 14.945/2024, que reformam o Ensino Médio, e a Lei nº 14.645/2023, que adequa a EPT às reformas .
Para refletir: suas vivências em políticas e programas
Para refletir sobre as suas vivências em relação às políticas e programas apresentados, responda por favor, as perguntas a seguir, cujas respostas poderão compor o seu Memorial:
- Você conhecia todas estas normativas?
- Quais você considera as mais importantes para seu cotidiano?
- Quais você as modificaria? O que você modificaria nelas? Porquê?
- Você vivenciou o período de debate e promulgação dessas leis e a implantação dos programas?
- Houve debate na escola ou em outro espaço? Promovidos por quais entidades?
- Você conhece as opiniões de seus colegas sobre elas? Elas coincidem com as suas?