Noções introduzidas pela ideologia neoliberal

Também foi introduzida a noção de “competências” a serem adquiridas no processo formativo: a “meritocracia”, o “empreendedorismo” e outras “inovações” que se tornaram correntes nos currículos, na mídia, nas políticas públicas, no discurso de gestores públicos e de políticos e até na linguagem cotidiana como parte da luta simbólica, dando suporte “teórico” aos programas e à legislação.

Nesse sentido, uma das noções introduzidas pelo neoliberalismo é a de competências. Essa, no contexto educacional, refere-se à capacidade de mobilizar conhecimentos, habilidades, atitudes e valores para resolver problemas e enfrentar desafios em diferentes contextos da vida cotidiana e do trabalho (Brasil, 2018). Difundida a partir dos organismos multilaterais e voltada para o aumento da produtividade do trabalho, essa noção operativa de forte carga ideológica ganhou espaço no Brasil a partir da década de 1990 em oposição ao conceito de qualificação. Nesse paradigma, estudos críticos revelam algumas tendências:

  • A fragmentação da aquisição do conhecimento, priorizando habilidades específicas em detrimento de uma formação mais ampla; 
  • O resumo dos objetivos a alcançar proficiência em tarefas específicas, sem a compreensão dos conceitos e das relações sociais envolvidas; 
  • A ênfase em competências demandadas pelo mercado, ignorando aspectos como a formação cidadã e a capacidade crítica, essenciais para a formação integral; 
  • A desconsideração da qualidade da formação e o impacto real das trajetórias dos estudantes; 
  • A acentuação das desigualdades, já que nem todos os estudantes têm acesso igual a recursos, formação e oportunidades que lhes permitam desenvolver as competências exigidas.

Além disso, observa-se também a formulação ideológica de meritocracia, princípio que defende que as pessoas devem ser recompensadas ou promovidas com base em seu mérito, ou seja, por suas habilidades, esforços e conquistas, sugerindo que o sucesso deve ser alcançado por meio do trabalho duro e do talento individual, ignorando fatores como origem social, conexões ou privilégios. Entretanto, o sistema de privilégios das elites, que mantém o status quo, desmente cotidianamente a meritocracia, tornando-a uma falácia por não considerar os diferentes “pontos de partida” individuais e a desigualdade das oportunidades disponíveis.

Ainda, a ideologia neoliberal também elabora a ideia de empreendedorismo, que  é a capacidade e disposição de iniciar, desenvolver e gerenciar um novo negócio ou projeto assumindo riscos financeiros e pessoais em busca de lucro ou impacto social. O empreendedorismo é visto como uma solução para o desemprego, desobrigando o Estado de executar políticas de geração de empregos e de seguridade social. Essa concepção apresenta forte carga ideológica, na medida que o trabalhador individual perde a sua identidade de subalterno (que continua sendo) e passa a se considerar “empresário” (parte da elite).

Essa noção está em oposição às noções de trabalho autônomo, autoemprego e trabalho familiar, além de competir e desestimular soluções mais sustentáveis, como a economia solidária (o trabalho em rede, associado ou cooperativo). Logo, ao promover a ideia de que o sucesso ou fracasso econômico é exclusivamente responsabilidade do indivíduo, esse sistema ignora deliberadamente os fatores estruturais, a desigualdade social e a falta de políticas públicas interseccionais, que afetam as oportunidades disponíveis para diferentes grupos.

A ideologia do empreendedorismo desvia a atenção das contradições entre capital e trabalho, minimizando as questões envolvendo direitos sociais, seguridade social e a melhoria das condições socioeconômicas coletivas que impactam os trabalhadores; promove, portanto, a privatização dos problemas sociais, criando a ideia de que cada indivíduo deve se virar sozinha sem apoio coletivo ou governamental. O lucro e a competição substituem os valores da solidariedade, empatia, tolerância e cidadania. Ademais, outro grande impacto negativo do empreendedorismo é a sua ênfase dentro das escolas, que transforma a educação em preparação para o mercado de trabalho, em detrimento da formação integral.

O resultado da visão de trabalho construída por essas noções tem consequências, listadas abaixo:

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Título: Consequências da lógica neoliberal no trabalho
Fonte: Prosa (2025b).

No Brasil, essas noções começaram a ganhar destaque nos anos 1990 ao tempo em que, em contraponto, surgiram as exigências de seguridade social pelos trabalhadores diante das crises econômicas, do aumento da insegurança no trabalho e das mudanças tecnológicas. Dentre as políticas públicas compensatórias, as qualificações profissionais de curta e curtíssima duração foram propagandeadas como “política ativa de emprego”, como se uma formação aligeirada tivesse o poder de garantir postos de trabalho.

Aparentemente, a origem do termo ensino profissionalizante (que não consta em nenhuma legislação consultada) é parte do processo de luta simbólica. Como era preciso distinguir a formação profissional de nível médio e superior dos “cursos livres” e, ao mesmo tempo, valorizá-los no imaginário da sociedade, o termo foi inserido pelos setores hegemônicos como sinônimo de formação profissional. Simbolicamente, é mantido o termo “ensino” (utilizado desde o Império), que remete a processos educativos e se sugere a possibilidade de profissionalização, com um sufixo que denota ação: “profissionalizante”. Na ressignificação crítica do termo, a conotação passa a ser de algo precário e raso, um “verniz “ de qualificação, antinomia de uma verdadeira Educação Profissional.

Como alternativa à “empregabilidade”, a proposta foi a construção de um sistema público de emprego, ou seja, um conjunto de ações articuladas com foco em políticas de geração de trabalho, emprego e renda capazes de minimizar os efeitos da crise sobre os trabalhadores e prepará-los para o ciclo econômico ascendente.

A posição hegemônica sobre a Educação Profissional está expressa na Lei nº 8.948/94 (modificada em parte pela Lei nº 9.649/98), que transformou as escolas técnicas federais em Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFETs) e criou o Sistema Nacional de Educação Tecnológica, incluindo também, de forma opcional, os serviços sociais de aprendizagem e proibiu a criação de novas unidades em seu parágrafo 5º do artigo 3º. Essa posição está presente, também, no Decreto nº 2.208/97, que regulamentou os artigos 39 a 42 do capítulo III (“da Educação Profissional”) do título V (“Dos níveis e modalidades de Educação e Ensino) da LDBEN/96.

Essas normativas, além de garantir a legalidade da concepção descrita anteriormente, também realizaram a introdução da formação modular, possibilitando a obtenção do diploma de técnico de nível médio cursando módulos sem conexão pedagógica ou institucional entre si. Outra questão é a estrutura curricular sem integração significativa com o Ensino Médio, não preparando adequadamente os estudantes para a continuidade dos estudos em nível superior, limitando suas opções acadêmicas. Além disso, a inexistência de um sistema claro para o reconhecimento dos diplomas de cursos técnicos em relação aos cursos superiores fazia com que muitos egressos de cursos técnicos enfrentavam dificuldades para ter seus conhecimentos e habilidades validados nas instituições de ensino superior, o que restringia seu acesso a essas instituições.

Outras medidas de caráter orçamentário e organizativo, em particular a Portaria nº 646/97 do MEC, levaram à queda vertiginosa dos cursos de Educação Profissional integrados ao Ensino Médio na rede federal, sendo privilegiados os cursos subsequentes ao Ensino Médio (ou pós-médios). Quanto às redes estaduais, o acesso a recursos do Programa de Expansão da Educação Profissional (PROEP), parceria entre MEC, MTE e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), exigia a publicização das redes – que seriam geridas por organizações sociais, com recursos públicos – para a oferta exclusiva de cursos técnicos subsequentes e de módulos de qualificação profissional. O objetivo de tais ofertas era restringir o acesso ao ensino superior, diminuindo a pressão social pela expansão dos cursos de graduação nas universidades públicas, ao tempo em que se formava mão-de-obra qualificada para as demandas do mercado de trabalho.

Ao mesmo tempo, o Plano Nacional de Qualificação do Trabalhador (PLANFOR), gerido pelo MTE com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), com orçamento de cerca de R$1 bilhão ao ano, ofertava milhares de cursos cuja média de carga horária oscilava entre 40 e 120 horas no período de 1998 a 2002, o que era insuficiente para garantir uma formação adequada aos trabalhadores desempregados e o público em geral.

O fracasso retumbante dessas políticas levou os movimentos sociais, em particular o sindical e o de trabalhadores rurais, a construírem experiências autônomas de educação integral e integrada, articulando a Educação de Jovens e Adultos (EJA) com a Educação Profissional em todo o país. De caráter setorial (metalúrgicos, químicos, rurais etc.) ou regional, essas experiências mantiveram viva a perspectiva emancipatória e inspiraram as políticas públicas do período posterior.