Possibilidades das relações entre cultura digital e EPT

É possível que você esteja esperando que seja trazido receitas para fazer isso, tanto no âmbito das práticas pedagógicas quanto em relação à gestão técnico-administrativa. 

Luciane Penteado Chequime
card do curso

As relações que se estabelecem socialmente, tal qual a educação, são construídas a partir de princípios como a autonomia, a criticidade, a ética e o respeito às diferenças, dentre outros. Esses princípios irão embasar as relações se a intenção é promover uma educação transformadora, isto é, que vise à superação da desigualdade e da opressão.

Entretanto, ao invés de lhe oferecer modelos, instruções ou um tutorial, no que diz respeito à docência que objetiva a formação omnilateral e emancipadora de trabalhadores e trabalhadoras, posso lhe trazer elementos para refletirmos sobre o processo de ensino-aprendizagem na e para a cultura digital.

Para tanto, pedirei a ajuda do professor Dermeval Saviani. Ele nos explica que o trabalho pedagógico consiste num trabalho de mediação que cria condições para a

“passagem dos educandos de uma inserção acrítica e inintencional no âmbito da sociedade a uma inserção crítica e intencional” 

(Saviani, 2019, p. 75).

Esse trabalho de mediação, segundo o autor, desenrola-se em cinco momentos. Vejamos.

O primeiro momento consiste em tomar a prática social comum a professores e a estudantes como ponto de partida, uma vez que ambos são agentes sociais. Todavia, é importante considerar que, em virtude de seu conhecimento e da sua experiência, o posicionamento que estudantes e professores ocupam em relação à prática social é desigual neste momento. Assim, por não conseguirem prever os níveis de conhecimento e experiência dos estudantes para planejar sua atuação pedagógica, a compreensão do professor configura-se numa síntese precária.

Já os estudantes, embora tenham experiências e conhecimentos, sua condição de estudantes não lhes permite, ainda, articular a experiência pedagógica à prática social na qual estão inseridos. 

Ao contextualizarmos o primeiro momento proposto por Saviani (2019, 2021), podemos considerar a cultura digital como o ponto de partida para o trabalho pedagógico na EPT. Nesse sentido, há uma diferença de posicionamento de professores e estudantes em relação aos conhecimentos e experiências como agentes da e na cultura digital. Isso ocorre não apenas porque têm níveis diversos de compreensão sobre as práticas sociais da e na cibercultura, como produtores, consumidores e disseminadores de informação, mas porque há nativos e imigrantes digitais entre estudantes da EPT e, também, entre professores que atuam na modalidade.

Desse modo, é importante que os professores se apropriem das tecnologias digitais, isto é, sejam alfabetizados e letrados digitalmente, para que possam, por um lado, fazer uso delas como recursos pedagógicos em suas aulas e, por outro lado, promover reflexões e formar trabalhadoras e trabalhadores para o uso crítico, ético e emancipatório no mundo do trabalho.

O segundo momento é a problematização, ou seja, 

“detectar que questões precisam ser resolvidas no âmbito da prática social e, em consequência, que conhecimento é necessário dominar”. 

(Saviani, 2021, p. 57)

Fazendo um paralelo com a cultura digital, esse é o momento para que temas relevantes na atualidade, como cyberbullying, inteligência artificial, fake news, redes sociais, tecnologias digitais em si, entre inúmeros outros, sejam enfocados de maneira questionadora, isto é, com vistas a desvelar suas múltiplas determinações e implicações na vida social.

A partir daí, chegamos ao terceiro momento, a instrumentalização, isto é, a

“apropriação por parte dos estudantes dos instrumentos teóricos e práticos necessários ao equacionamento dos problemas detectados na prática social”.

(Saviani, 2019, p. 76.)

É aqui que o professor entra com todo o seu conhecimento específico da área de formação para propiciar aos estudantes conceitos, teorias, técnicas, procedimentos, enfim, todo o arcabouço teórico-prático para apreender e intervir na realidade.

Essas intervenções na realidade podem incluir o próprio uso das tecnologias digitais como ferramentas. Por exemplo, a criação de blogues e sites, postagens de textos e vídeos em redes sociais, desenvolvimento de aplicativos e softwares etc.

Ao tratar da instrumentalização, Saviani (2021, p. 57) coloca, claramente, que os instrumentos teóricos e práticos resultam da produção histórica e social. Assim, sua apropriação pelos estudantes depende da “transmissão direta ou indireta por parte do professor”. Explicando melhor,

“o professor tanto pode transmiti-los diretamente como pode indicar os meios pelos quais a transmissão venha a se efetivar”.

(Saviani, 2021, p. 57).

Assim, se o objetivo é formar futuros trabalhadores que hajam crítica e eticamente na e para a cultura digital, é fundamental que os professores mobilizem e orientem a inteligência coletiva (Lévy, 2010, 2011), inserindo as tecnologias digitais no processo de ensino-aprendizagem e valorizando os saberes singulares de cada estudante. 

“A expressão inteligência coletiva foi cunhada por Pierre Lévy [...] para designar uma inteligência distribuída em toda parte, que deve ser valorizada e coordenada, a fim de resultar na mobilização de competências. A noção de inteligência coletiva pressupõe a identificação das habilidades distribuídas em todos os indivíduos com o propósito de coordená-las por meio do emprego das tecnologias da informação e comunicação, para utilização em prol da coletividade nos planos cognitivo, social, político e econômico. Não se deve conceber a inteligência coletiva simplesmente como uma fusão de inteligências individuais, mas como uma revitalização das singularidades. A inteligência coletiva faz do saber a principal base para as relações humanas”. (Andretta; Pajeú, 2018, p. 367).

Para tanto, coadunam com a EPT no contexto da cultura digital 

  • “o planejamento, execução e avaliação de conteúdos educacionais que se apropriem de diferentes linguagens comunicacionais em uma construção multifacetada” (Montanaro, 2018, p. 207) na perspectiva da educação transmídia,
  • escolha de estratégias metodológicas que propiciem maior envolvimento e que promovam a autonomia
  • o compartilhamento de conhecimentos e o diálogo entre os estudantes.

Chegamos, então, ao quarto momento da mediação: a catarse,

“o ponto culminante do processo pedagógico, quando ocorre a efetiva incorporação dos instrumentos culturais, transformados em elementos ativos de transformação social”.

(Saviani, 2019, p. 76).

Por fim, o ponto de chegada é a própria prática social, porém compreendida, agora, de maneira qualitativamente diferente do ponto de partida, pois a síncrese inicial tornou-se síntese. Assim, os estudantes, apropriados dos conhecimentos teórico-práticos construídos socialmente pelo ser humano ao longo da História, rompem o senso comum, mudando sua visão de mundo, passando a enxergar a sociedade a partir de suas múltiplas determinações e a si próprios como sujeitos atuantes e transformadores da realidade.

card do curso

Título: Os 5 momentos da mediação pedagógica de Demerval Saviani
Elaboração: Prosa (2024).